O Fluminense conquistou o título mais desejado de sua história neste sábado, 4 de novembro de 2023. O clube campeão da Taça Libertadores da América era a grande paixão do cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues. E uma vitória épica como essa merecia uma crônica do nosso Shakespeare.
Dada a impossibilidade de satisfazer esse outro sonho, qual seja, o de ler Nelson Rodrigues aplicando sua estética ao caminho tricolor rumo à Glória Eterna, tomei a liberdade de fazer pequenas modificações sobre sua crônica “Chega de Humildade”, escrita para narrar a – também épica – vitória do Fluminense sobre o Flamengo na final do Campeonato Carioca de 1969.
Esta crônica é conhecida de muitos tricolores. Ela ficou famosa na leitura de Paulo Cezar Pereio durante o episódio do Canal 100 que o rubro-negro Carlinhos Niemeyer produziu sobre aquele Fla-Flu.
Vamos, então, à crônica adaptada.
Chega de humildade, de Nelson Rodrigues.
Publicado originalmente em O Globo de 16 de junho de 1969.
Adaptado por Thiago Rachid ao contexto da disputa e conquista do título da Libertadores da América 2023 pelo Fluminense FC.
Chega de Humildade
Amigos, a humildade acaba aqui. Desde sábado o Fluminense é o campeão da América. Na maior final de todos os tempos, o tricolor conquistou a sua mais bela vitória. E foi também o grande dia do Estádio Mário Filho. A massa “pó-de-arroz” teve o sentimento do triunfo. Aconteceu, então, o seguinte: — vivos e mortos subiram as rampas. Os vivos saíram de suas casas e os mortos de suas tumbas. E, diante da plateia colossal, Fluminense e Boca fizeram uma dessas partidas imortais.
Daqui a duzentos anos a cidade dirá, mordida de nostalgia: — “Aquela final!”. Ah, quem não esteve sábado no Estádio Mário Filho não viveu. E o Fluminense fez uma exibição perfeita, irretocável. Lutou com a alma indomável do campeão. Ninguém conquista o título num único dia, numa única tarde. Não. Um título é todo sangue, todo suor e todo lágrimas de um campeonato inteiro.
Acreditem: — o Fluminense começou a ser campeão muito antes. Sim, quando saiu do descrédito para o respeito. “Do descrédito para o respeito”, repito, foi a nossa viagem maravilhosa. Lembro-me do primeiro momento em que o time de Fernando Diniz mostrou que merecia respeito. As esquinas e os botecos faziam a piada cruel: — “Só ganha o Cariocão”. Daí para a frente, o Fluminense mostrou que não era só um time para ganhar o Carioca.
Olhem para trás. Do título carioca até ontem, não houve time mais encantador e, apesar de inconstante, não há outro com um toque de bola mais harmonioso. Mas foi engraçado: — por muito tempo, ninguém acreditou no Fluminense, ninguém. Um dia, Marcelo veio da Europa. Era o jogador mais vitorioso da história da Espanha. Tínhamos agora um cracaço. E nunca mais se interrompeu a ascensão para o título.
O curioso é que, há muito tempo, aqui mesmo desta coluna, fez-se o vaticínio de que a Libertadores teria a sua decisão num Fluminense x Boca. Era preciso ganhar dos dois maiores clubes da Argentina. E desde quando goleamos o River Plate em maio, fez-se a profecia: “Este é o ano do Fluminense!”.
Mas, vamos ao jogo final. Amigos, o que se viu sábado no Estádio Mário Filho foi espantoso. Primeiro, a tempestade de bandeiras. O canto ininterrupto da nossa torcida. Ah, a nossa torcida!
E que formidável partida! Houve, durante cento e vinte minutos, um suspense mortal. O Fluminense fez o primeiro gol e o Boca empatou. O Fluminense ainda teria um expulso e o Boca também perderia um jogador. Setenta mil pessoas atônitas morriam nas arquibancadas, camarotes e cadeiras cativas. E foi preciso que John Kennedy, o garoto do Fluminense, o mais decisivo do campeonato, marcasse aquele que seria o gol da vitória, da doce e santa vitória. E o Boca não empatou mais, nunca mais. Era a vitória, era o título.
Agora a pergunta: — e o personagem da semana? Podia ser John Kennedy, que fez uma exibição magistral e, inclusive, um gol. Podia ser Nino, que volta a ser o grande líder e um dos maiores jogadores brasileiros de defesa. Penso também em André, que, teve intervenções sensacionais. Podia ser também Diniz, que, sóbrio, modesto, trouxe a equipe do descrédito para o título da Libertadores. Mas entendo que desta vez o personagem deve ser o time. Do goleiro ao ponta-esquerda. Todos, todos mostraram uma alma, uma paixão, um ímpeto inexcedíveis.
Pelo amor de Deus, não me venham dizer que o time do Boca é fraco. O time portenho cresceu com a desvantagem de talento, defendendo-se com bravura. Eram onze fanáticos dispostos a vencer ou perecer. O Boca teve ontem um dos grandes momentos de sua história.
Mas, dizia eu no começo que a nossa humildade pára aqui. Passamos toda a jornada com um passarinho em cada ombro e as duras e feias sandálias nos pés. Mas o Fluminense é o campeão. Erguendo-me das cinzas da humildade, anuncio: — “Vamos tratar do bi”.
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