Um amigo curioso, e, não raro, irreverente, me fez, há algum tempo, numa conversa despreocupada, uma drôle de pergunta: “Por que creio em Deus?”. Respondi-lhe que não iria lhe fazer nenhuma longa exposição teológica. Sobre não se prestar o encontro para nenhuma especulação do gênero, ser-lhe-ia mais proveitoso ir aos Padres e Doutores da Igreja e ali beber ensinamentos de dois mil anos de doutrina.
Adverti-o, porém, que teria de fazer, antes, uma longa, bem longa iniciação, pois os teólogos são inacessíveis aos leigos, senão com pacientes estudos, e falam linguagem rigorosa, com a qual não mais está habituado o mundo moderno.
Não queria nada de profundo o meu curioso amigo; apenas uma resposta breve, que o satisfizesse a ele, ateu, ou, se não tanto, indiferente à ideia de um Deus todo-poderoso governando os destinos do ser humano sobre a face da Terra. Respondi-lhe que creio em Deus para que ele e todos os outros se salvem, e se encontrem depois do fim de seus dias na resplandecência divina.
Reconheço não ser fácil convencer milhões de habitantes do mundo a crerem em Deus e em Cristo. Se até padres não creem, como vamos convencer leigos a aceitar a existência de Deus? Está absorvente demais o mundo contemporâneo para que a fé tenha a vitalidade antiga. Esse dom gratuito desertou as almas, e o resultado se verifica na imensa crise que a humanidade inteira braceja, nestes dias incertos.
Escrevi um livro para demonstrar que a tecnologia, com as suas formidáveis conquistas, a ciência, com as suas estupendas invenções e descobertas, nada são sem a sabedoria, entendida esta como o primado do espiritual. Sei que meu livro foi lido, tendo, para surpresa minha, se esgotado a sua edição. De todos os meus livros, esse “A extensão humana – Introdução à filosofia da técnica” é o de que gosto mais. Os livros são como os filhos. Eu que não tive estes, pressinto, mais do que sinto. Gostamos mais de uns do que de outros. Da dezena que já produzi, esse mais me agrada; pretendo, mesmo, preparar uma segunda edição, acrescida da imensa bibliografia que apareceu depois de seu lançamento em 1970. Sobreponho nesse trabalho a sabedoria à ciência, e afirmo que esta sem aquela acaba esterilizadora.
“Fronteamos o progresso da técnica, e que concluímos?”, dizia eu. “O progresso técnico desenvolve-se com espantosa velocidade, comunicando às atividades sociais movimentos rapidíssimos, de tal maneira que o homem contemporâneo, preso a um turbilhão, vai sendo cada vez menos livre, se não conservar o espírito sobranceiro aos vínculos da temporalidade. As místicas do mundo moderno, paradoxalmente, o encadeiam; são as formas de utopia em que ele se perde. A mística do progresso indefinido, ao qual tanto o homem aspirou e continua aspirando; a mística do conhecimento, que responde à sua incoercível curiosidade; a mística da posse, da conquista, do domínio, que, por um lado o libertam das forças da natureza, e, por outro, o prendem às forças ideológicas, que escravizam o espírito em nosso tempo. A ciência veio a ser, assim, a liberdade e a alienação do homem. Esse o grande problema do nosso tempo. O problema da ciência, o problema da técnica, o problema do homem, do espírito, de sua liberdade”.
O mundo é crente ingênuo. Crê no poder ilimitado da ciência, nas maravilhas que lhe oferece a tecnologia. Mas estamos todos cercados numa temporalidade imanente, da qual não escaparemos, se não nos fortalecermos em nossa fé. A ciência e a técnica devem estar submissas ao espírito, devem servir o ser humano e não aliená-lo. Crer em Deus é mais necessário do que crer na ciência e na técnica.
Se há uma época em que o ser humano deve procurar contato com Deus, é esta, apesar de todas as “transferências”, todas as distrações que o levam para a temporalidade, para as galas do mundo. Jean Rostand, que morreu faz poucos meses, dizia que a ciência fez do homem um deus, antes que ele merecesse ser homem mesmo.
Essa é a questão. Dois mil anos de cristianismo não bastaram para vencer o mal, nem a rebeldia que é a nota do pecado original, e agora não vemos como possam, de novo, as almas se fortalecer no alimento espiritual da mensagem cristã, se as igrejas estão apenas cheias da longa presença das almas, mas vazias de crentes.
A separação entre a ciência e a sabedoria, uma das notas da revolução kantiana, atinge, agora, a perigosa etapa da inconciliabilidade. Seria impossível não ver o fenômeno; por isso mesmo, devemos reagir, para que a ciência retorne à sua condição de causa segunda, e, através dela, a sua objetivação, a técnica.
Temos necessidade do primado da Causa primeira, à qual todas as causas devem ser subordinadas.
Enquanto não se operar essa reversão no mundo, não teremos paz. É simples ter paz. E, mesmo, simplíssimo. Basta reencontrar as fontes da autêntica espiritualidade, isto é, como dizia Maurice Blondel, procurar o nosso fim além de toda a ordem imanente e transitiva.
Como se vê, seria difícil responder por que creio em Deus, além de ser a fé um dom gratuito. Mas, se não crermos em Deus, lembrem-se, ó mortais, que tudo será permitido, e voltaremos ao caos, de onde saímos. Não é o que desejamos. Daí, defendermos o primado do espiritual no mundo.