[Nota Introdutória do Tradutor]
A monarquia espanhola vive um momento de raríssima turbulência. O Rei Emérito Don Juan Carlos, um herói da Espanha, está sendo acusado de fraude contra o fisco. Para estancar a crise, deixou o país e foi para o exílio.
O estado espanhol segue chefiado por seu filho, o Rei Felipe VI. A normalidade está retornando. E neste artigo publicado no jornal El Mundo, Arman Basurto faz uma defesa da monarquia constitucional como a melhor forma de governo a partir da experiência espanhola. Mas quatro razões elencadas servem para a reflexão de outros países, inclusive o Brasil.
Segue o artigo:
Uma defesa da monarquia
O autor faz uma defesa da instituição como o melhor sistema para determinar a liderança de um país a partir de sua contribuição para os assuntos de Estado, desvinculada do caráter e das virtudes de quem a representa.
Por Arman Basurto
A saída do Rei Emérito Don Juan Carlos da Espanha, além de representar o triste declínio de uma figura-chave na história da Espanha, mostra até que ponto nosso país tem confiado excessivamente no carisma de seu primeiro rei democrático. Com a morte do juancarlismo, numerosas vozes lamentam a ausência de uma defesa monárquica para além do mero pragmatismo.
Assim, perante a evidente deterioração do mito fundador do chamado regime de 1978, é necessária uma defesa da instituição baseada na sua contribuição para os assuntos do Estado, desligada do caráter e das virtudes de quem carrega a coroa. Se se pressupõe que o desejável é ter um chefe de estado apartidário, sem capacidade executiva, que priorize a visão de longo prazo e não esteja sujeito aos ciclos eleitorais que condicionam o exercício de outras magistraturas, vários são os argumentos que justificam que a monarquia é o melhor dos sistemas possíveis para determinar a liderança de um estado democrático.
Primeiro. Uma vantagem da sucessão dinástica é que ela introduz um forte incentivo para o monarca ser guiado por uma visão que transcende seu próprio mandato. Assim, quem reina sente não só o peso das gerações passadas, mas também a necessidade de garantir que seus filhos e netos tenham acesso ao trono. É prioritário que o chefe de Estado atue com visão de longo prazo e que suas ações não colidam com os interesses eleitorais.
Por isso, nas raríssimas ocasiões em que um rei fala, o faz com o peso da história sobre os ombros e o desejo de que os efeitos benéficos de sua intervenção se projetem para além de sua vida, fato que confere a essas intervenções uma auctoritas singular. A título de exemplo, será que o povo japonês em 1945 teria aceitado a rendição com tanta parcimônia se algum líder político a tivesse sugerido? Difícil de acreditar.
Segundo. Em sua obra The English Constitution, Bagehot dedicou um capítulo à justificativa do papel da monarquia britânica, onde, dentre outras razões destaca o que ele chamou de “tornar o Estado reconhecível”. Sua tese (profundamente classista, pois afirmava que colocar uma família na chefia do Estado tornava mais fácil o envolvimento das classes pobres na política) foi descartada, mas é inegável que as monarquias contemporâneas favorecem os conhecimento do Estado além de suas fronteiras e constituem um reforço decisivo do soft power de uma nação de médio porte como a Espanha.
Simplificando: poucos conhecem o presidente da Alemanha, mas uma parte considerável da população mundial poderia citar mais de um neto da Rainha da Inglaterra. Comemorações, presença em fóruns internacionais ao longo de décadas, relacionamento pessoal e até sua presença no papel couché dos convites mundo afora contribuem para a projeção da imagem do país, dando-lhe um peso no diálogo internacional que, a priori, não lhe corresponderia.
Terceiro. Se, como muitas vezes é afirmado com desdém, uma virtude da monarquia é ser bonita, isso é porque ela permite preservar um patrimônio cultural inestimável. O Estado dedica grande verba orçamentária à preservação de bens e ritos tradicionais, e há consenso de que atividades como as danças moçárabes ou o Caminho de Santiago são manifestações culturais do passado que devem ser mantidas.
A Monarquia contribui para esse fim de forma destacada. Pense na história milenar dos caçadores de Espinosa, que velavam pelo cadáver do rei de Castela (e hoje da Espanha). Ou na obra dos frades agostinianos no solo podre de El Escorial (um lugar do qual quase nenhuma imagem existe), enterrando os restos mortais da realeza em um ritual ininterrupto de séculos. A quantas manifestações culturais de menor significado histórico que a monarquia o Estado dedica recursos?
Quarto. Um chefe de Estado sem funções de governo deve ir além de sua própria exemplaridade e dotar-se de uma neutralidade que lhe permita agir quase como um símbolo vivo. A máxima latina de que o rei não pode errar (rex non potest peccare) simboliza isso: o rei não pode errar, tampouco pode acertar. A magistratura real exige que a pessoa que a incorpora seja despojada de qualquer virtude ou defeito, excesso ou desejo dinâmico (e, talvez, D. Juan Carlos não tenha sido bom rei nesse sentido).
A Coroa exige que aquele que a usa abandone toda pretensão de derramar sua personalidade nela. Só assim a frase latina ganha sentido e questiona, ao mesmo tempo, as supostas vantagens de uma presidência eleita: de que adianta exigir virtudes ou carisma de quem o deve abrir mão deles antes de tomar posse?
Nas últimas semanas, questionou-se se a inviolabilidade real [NT: uma espécie de inimputabilidade do rei] teve influência nas más ações de Don Juan Carlos como se fosse esta inviolabilidade uma espécie de doença congênita da monarquia (apesar dos escândalos dos presidentes da República Francesa, igualmente invioláveis).
O problema, neste caso, foi de estender a inviolabilidade a todas as ações do monarca, e não apenas àquelas relacionadas ao exercício de suas funções (segundo critérios de autores como Gimbernat Ordeig). A inviolabilidade, que é necessária, não deve ser uma carta branca.
O que limita o risco criado pela inimputabilidade do rei? A certeza de que outro de sua linha o sucederá. A transmissão hereditária costuma ser vista como um privilégio, mas enfrenta sacrifícios. O rei emérito teria aceitado o exílio se não tivesse que garantir que sua neta subirá um dia ao trono? Um ex-presidente aceitaria ser condenado ao ostracismo sem um único gesto de autodefesa? A sucessão dinástica é, em última análise, o principal contrapeso à inviolabilidade.
Talvez Don Juan Carlos pense que com sua partida seus descendentes poderão conquistar o futuro (parafraseando seu famoso discurso) passando do juancarlismo ao institucionalismo, mas deve estar ciente de que é um salto no vazio. O monarquismo na Espanha sofre de anemia, e hoje a Coroa não tem ninguém para lhe socorrer.
Seria trágico se, no futuro, quem ler a carta que D. Juan Carlos enviou ao seu filho (comunicando sua decisão de sair do país) soubesse que não foi possível preservar o regime que nos trouxe maior prosperidade nos últimos dois séculos. Poucas coisas causam maior angústia ao revisar a história do que descobrir esforços que foram inúteis.